Audiência foi marcada pelo protagonismo dos moradores da comunidade e pela ausência de autoridades da Segurança Pública.
Reportagem e fotos por Rodrigo Barbosa, em parceria com os projetos Cotidiano e JAC UFSC
Uma audiência pública na Câmara de Vereadores discutiu, na tarde da última quinta (9 de junho de 2022), a violência das forças de segurança no Morro do Mocotó, comunidade do centro de Florianópolis. O debate durou cerca de três horas, lotou o Plenarinho da Câmara e foi marcado por duras críticas de moradores da comunidade à ação da polícia no morro.
“A gente veio fazer uma denúncia, prestar queixa. Porque a comunidade não aguenta mais a força da polícia agindo com extrema violência. Hoje, no nosso Brasil, é muito difícil poder denunciar”, relatou Moisés Nascimento, liderança comunitária do morro, durante a audiência. Moisés é representante da Frente da Juventude Vozes da Favela, movimento social que denuncia a violência policial na capital catarinense. “O nosso pedido é muito simples, porque fingir que não está acontecendo já não cabe mais”, completou.
A audiência da última semana foi um requerimento da Coletiva Bem-Viver (PSOL), realizado em outubro do ano passado. Poucos dias antes, em 27 de setembro de 2021, um adolescente foi morto pelas costas em uma operação da Polícia Militar no Mocotó. No mesmo dia, a ACAM (Associação de Amigos da Casa da Criança e do Adolescente do Morro do Mocotó) foi invadida e seus funcionários ameaçados por agentes da Polícia Civil. Ambos fatos foram revelados em primeira mão pelo Cotidiano UFSC. A associação, inclusive, foi uma das pautas mais comentadas durante a audiência.
“Por que a polícia age com tanta violência no Morro do Mocotó, em um espaço que já tem tantos dos seus direitos negados?”, questionou Betânia Zahlouth, coordenadora geral da ACAM. Ela destacou o fato de que boa parte das incursões policiais no morro têm acontecido em horários de alta circulação na comunidade, quando crianças e adolescentes estão indo ou voltando da escola. Foi o caso da operação que culminou em morte e levou à realização da audiência.
Invasão à parte, pessoas ligadas à ONG ainda denunciaram outros episódios de violência ocorridos contra funcionários. “Já presenciei um educador da ACAM relatar o quanto ficou constrangido por ter sido abordado por policiais indo para a casa, na saída do expediente, mesmo ele estando de uniforme e crachá”, disse Betânia. A agressão a Michel da Silva Costa, morador do morro e então educador da ACAM, também foi relembrada. Ele foi agredido no rosto em maio de 2020 durante uma ação da Polícia Civil. No momento da agressão, Michel estava uniformizado e entregava cestas básicas a famílias do morro.
Os jovens atendidos pela ACAM (dos quais parte estava no Plenarinho) também já foram vítimas de violência. “Já presenciei criança de seis anos de idade chorando com medo da polícia”, pontuou Betânia. A ONG, que já ouviu de perto o disparar dos fuzis da polícia em mais de uma ocasião, ainda sofre com a falta de profissionais devido à ação da PM. Segundo pessoas ligadas à ACAM, de um total de oito professores que começaram a lecionar no Ensino de Jovens e Adultos (EJA) da associação, no ano passado, apenas um segue indo à comunidade. Os outros sete abandonaram o projeto por medo da polícia.
“A PM passou lá falando ‘É melhor todo mundo ficar em casa hoje, hein?’”, relatou um profissional, ainda no ano passado.
A falta de políticas públicas de outros setores, como Educação, Saúde e Saneamento, também foram constantemente relembradas. “Essas áreas não fazem parte do orçamento anual da gestão pública. Essa é uma realidade. São áreas totalmente esquecidas em relação à construção de políticas públicas. E a gente se pergunta: o que sobra nessas áreas? Sobra a presença da polícia, extremamente repressiva”, lamentou o Padre Vilson Groh, que há 40 anos realiza ações socioassistenciais nas periferias de Florianópolis, sendo fundador e presidente da Rede IVG, à qual a ACAM é afiliada. Ele destacou o déficit de políticas públicas nas áreas de lazer, transporte e geração de trabalho e renda.
Ausência de autoridades da Segurança Pública
Se moradores do Mocotó e movimentos sociais deram a cara à tapa para tentar construir um debate em torno das políticas públicas no morro, a mesma coisa não pode ser dita das autoridades da Segurança Pública. Convidadas a participar da audiência, instituições como as Secretarias de Segurança Pública municipal e estadual, bem como as Corregedorias das Polícias Militar e Civil não estiveram presentes – fato este que foi criticado em diversas ocasiões durante a audiência.
A Secretaria Municipal de Segurança Pública talvez tenha sido a mais sentida de todas as ausências. Além de o debate ter acontecido na Câmara (portanto, em esfera municipal), o atual secretário é antigo conhecido das comunidades periféricas de Florianópolis. Carlos Alberto de Araújo Gomes, que ocupa o cargo desde fevereiro de 2021, após rápida passagem pelo Governo Bolsonaro, foi comandante-geral da Polícia Militar de Santa Catarina entre os anos de 2018 e 2020 (acumulando a Secretaria Estadual em 2019). O período entre 2018 e 2020 foi justamente o período de vigência da Operação Mãos Dadas, idealizada por Araújo Gomes (hoje coronel reformado). A operação ocupou, em agosto de 2018, a região mais alta do Mocotó, sem aviso prévio aos moradores. Embora estabelecida para supostamente levar mais políticas públicas à comunidade, a Mãos Dadas é tida por muitos moradores como mais um instrumento que agravou a violência policial na comunidade. Além disso, os anos de 2018, 2019 e 2020 ocupam três das primeiras quatro posições entre os anos onde houve maior número de mortes em decorrência de ações policiais em Santa Catarina (99, 78 e 86, respectivamente, de acordo com os dados da SSP/SC).
Ministério Público e Defensoria Pública também se abstiveram do debate. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por sua vez, se fez presente. Através das Comissões de Direitos Humanos e Promoção da Igualdade Racial, a OAB se colocou à disposição da comunidade para auxiliar em casos de violência. “A nossa Comissão tem como uma de suas tarefas receber denúncias de violação de direitos humanos, então estamos à disposição para eventualmente receber essas denúncias”, disse Rodrigo Sartori, presidente da Comissão de Direitos Humanos. Segundo ele, a pauta dos direitos humanos não é central para as forças de segurança.
O que esperar para o futuro?
A ausência de instituições do Estado no debate interferiu negativamente nos encaminhamentos finais da audiência. Proposta do Padre Vilson Groh, um fórum permanente para acompanhar temáticas relativas ao Maciço do Morro da Cruz, onde está o Mocotó, não contará, num primeiro momento, com a participação das instituições ausentes – vistas como fundamentais para a evolução do debate. Outro encaminhamento foi o requerimento de uma sessão especial convocando a Secretaria Estadual de Segurança Pública a prestar esclarecimentos sobre a abordagem policial na comunidade. Também serão pedidas explicações à PMSC quanto à falta de identificação de policiais durante operações e quanto ao uso irregular das câmeras corporais. A ata da audiência foi enviada para todas as instituições ausentes.
A falta de espaço de escuta já pôde ser percebida antes mesmo da realização da audiência. O debate aconteceu oito meses depois do requerimento da Coletiva Bem-Viver e passou perto de sequer acontecer. Além disso, foi pedida, com antecedência, a identificação de todas as pessoas que iriam se pronunciar durante a audiência – prática que não é de praxe da Câmara.
O período que separou o requerimento na Câmara da realização efetiva da audiência foi marcado por operações policiais constantes no Mocotó e novos episódios de violência. Uma mãe que já havia perdido o filho de 17 anos no ano passado, desta vez viu o filho mais velho ser baleado em uma operação policial. O episódio ocorreu em 26 de abril de 2022, mais uma vez próximo a local onde crianças faziam atividades.
“Tivemos uma ação policial durante o dia, com crianças e adolescentes chegando da escola, chegando em casa, mães e pais. Tinha até uma turma de grafite de um programa que a gente tem na comunidade. Estavam grafitando alguns muros, para deixar a comunidade ainda mais bonita. Um trabalho social que pode ajudar os moradores, que queiram pintar o muro. E, neste meio tempo, a coisa de dois metros, bem pertinho, teve um tiroteio. De repente, hoje a gente poderia estar falando de outras vidas inocentes perdidas. A gente pede um pouco mais de segurança dentro da comunidade, porque a Polícia Militar, na verdade, é para fazer a segurança, e não trazer insegurança “, conta Luiz Taffarel de Souza Lopes, educador social e liderança comunitária do Mocotó. A fala de Taffarel fez parte de um vídeo com depoimentos de moradores da comunidade que foi passado na abertura da audiência.
O tiroteio não foi o único episódio violento do dia 26 de abril. Minutos mais tarde, um adolescente, também de 17 anos, foi agredido por um policial. “Eu só abaixei a cabeça e subi chorando pra casa da minha namorada”. O jovem e a namorada voltavam do Instituto Catarinense, onde estudam, quando ele foi agredido no rosto, indo ao chão. “Eu tava no hospital com a minha filha. Eu não consegui nem consultar a minha filha. Quando a minha nora me ligou, na hora já me deu uma crise de nervo. Faltavam quatro pessoas na minha frente, eu tava a tarde inteira no hospital e eu tive que ir embora, porque eu não aguentei”, relembra Luiza, mãe do adolescente. Ela representou as mães do morro na audiência pública, fazendo um dos discursos iniciais. Seu filho já havia sofrido uma outra abordagem violenta há menos de um ano.
“O meu filho é um ser humano, ele não merece levar tapa na cara. Ele é um estudante”, lamentou Paulo, pai do jovem. Ele tentou dialogar com os policiais após o ocorrido e perguntou pela identificação do agente que agrediu o filho, mas não obteve resposta. A tentativa de diálogo foi registrada em vídeo, também apresentado na abertura da audiência.
Confira o vídeo, publicado no Portal Desacato: