Nos seis primeiros meses de 2020, a polícia matou 11 pessoas, com idade entre 15 e 24 anos em Florianópolis; dois deles na data que deveria representar a vida.
Reportagem de Gabriele Oliveira
Foi em 13 de abril de 2023.
Três anos após a morte dos seus filhos, Raquel Arruda precisou retirá-los da sepultura alugada e levá-los para um túmulo fixo em outro cemitério, em uma cidade próxima a Florianópolis.
Sentada no banco de um carro de aplicativo, Raquel segurava uma caixa de plástico com os restos mortais dos dois jovens. Tudo que sobrou daqueles que ela mais amou em sua vida, estava naquela caixa, embalado em pequenos sacos plásticos.
Leonardo Leite Arruda Alves, o mais velho, tinha recém completado 18 anos. “Ele era lindo, tão educado. Se dava com todo mundo”. Marlon Leite Arruda Alves, o mais novo, tinha 15 anos. “Ele era meu neném. Onde eu tava, ele ia”.
Os dois irmãos foram mortos no dia 12 de abril de 2020, no Morro da Perla, no bairro Saco dos Limões, em pleno domingo de Páscoa. A comunidade estava em festa, apesar da pandemia: som alto, famílias unidas e crianças correndo pelos becos, empinando pipa e jogando bola.
Até a polícia chegar.
O primeiro a ser atingido foi o mais novo, baleado nas costas, enquanto subia a escadaria. Na sequência dos disparos, a comunidade ouviu o desespero na voz de Leonardo, gritando “Mataram o Marlon! Mataram o Marlon!”, enquanto corria, tentando chegar a tempo de socorrer o irmão. Testemunhas relatam que Leonardo estava desorientado, e, quando encontrou com os policiais, paralisou.
“Quando ele foi voltar, que ele viu a polícia subindo e dando tiro, ele voltou correndo, mas já tinha polícia descendo. Ele estava parado na frente do portão da casa, era só ele entrar. Mas ele estava tão nervoso, tão desnorteado, que ele não entrou. Ele ficou pedindo para madrinha abrir o portão, ele não entrou”, relata uma testemunha.
De acordo com policiais do Pelotão de Patrulhamento Tático (PPT) e do 4º Batalhão da Polícia Militar, as mortes de Marlon e Leonardo são resultado de uma ação em legítima defesa – contrariando o relato de diversos moradores da comunidade. O processo corre em segredo de Justiça, por isso não é possível ter acesso aos laudos periciais.
Ao chegar no Morro da Perla, Raquel se deparou com dezenas de policiais, que não deixaram a família se aproximar. “Estavam rindo, achando engraçado. A postura deles era debochada, estavam alegres, pareciam aliviados. Era uma expressão de felicidade, um falava com outro, dava risada, vinha e me xingava – mandava eu calar a boca, ficar quieta. Eu só queria subir o morro pra ver se eram meus filhos”.
Devido à pandemia e a necessidade de isolamento social, o velório dos irmãos foi restrito a poucos familiares e durou apenas uma hora e meia. Raquel se lamenta ao lembrar de todas as tentativas de ajudar os filhos a saírem do tráfico – na época em que abandonaram a escola, chegou a pedir ajuda para o Conselho Tutelar e para a própria polícia.
Agora, o que resta de Marlon e Leonardo cabe em uma caixa – e nas memórias da mãe, que falou com os filhos pela última vez no domingo de manhã, poucas horas antes da polícia chegar. “Eles falaram que me amavam muito, eu também falei que amava muito eles, que era para eles se cuidar. Se dependesse de mim, meus filhos nunca teriam se envolvido com nada disso, mas agora é tarde demais.”
Infelizmente, o caso de Marlon e Leonardo não é exceção. O período de isolamento social trouxe ainda mais violência para as comunidades: em 2020, 18% das mortes violentas em Florianópolis foram causadas pela polícia. Em 2019, a taxa era de 13%.
Para pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, taxas acima de 10% podem indicar que há exageros das forças armadas, alertando para “sérios indícios de execução e uso excessivo da força”. Em 2021, a taxa de mortes violentas causadas pela polícia na capital subiu para 21,4%.
Nos seis primeiros meses de pandemia, a polícia matou 11 pessoas, com idade entre 15 e 24 anos, nas periferias da região central da cidade, como mostra a reportagem do Portal Catarinas. No Estado, houve recorde no número de mortes em decorrência de ações policiais em meio à pandemia – de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 61 pessoas foram mortas pela polícia catarinense apenas no primeiro semestre de 2020. O número representa um aumento de 42% em relação ao primeiro semestre do ano anterior. No mesmo período, o número de crimes violentos cresceu 14% – o aumento de mortes ocasionadas pela polícia aumentou três vezes mais do que o de crimes violentos em Santa Catarina.
Dois dias antes da morte de Marlon e Leonardo, o Morro do Mocotó viu o corpo de Everton Rosa da Luz (22) e Lucas Pereira da Silva (21) saírem da comunidade em sacos pretos. Os dois jovens negros morreram por politraumatismo após suposto conflito armado com a polícia – Everton levou quatro tiros, Lucas, cinco.
Nesta operação, as câmeras corporais dos policiais estavam desligadas. No local do crime, foi encontrado apenas um tipo de projétil – sob um dos cadáveres, evidenciando a possibilidade dos corpos terem sido movimentados antes da chegada da perícia.
Na “legítima defesa” que matou Everton e Lucas, foram contabilizados 58 disparos feitos com armas de fogo de quatro calibres, todas da polícia. Apesar do inquérito policial concluir que os policiais agiram com excesso, o Ministério Público optou por não indiciar os agentes, alegando que agiram em legítima defesa. O caso foi arquivado em 21 de outubro de 2020.
Em meio ao luto, familiares das vítimas e moradores do Mocotó se uniram para denunciar as violências sofridas pela comunidade. Foi neste período que se consolidou a Frente Juventude Voz das Favelas, organizada por Moisés Nascimento e Liznaria Souza, lideranças na comunidade, e que atuou na linha de frente de um dos protestos mais marcantes na história do Maciço.
No dia 4 de maio de 2020, Florianópolis amanheceu com 12 cruzes fincadas no canteiro central da rua Silva Jardim, na entrada do Morro do Mocotó. Símbolo utilizado na época para sinalizar as mortes por covid-19, as cruzes foram ressignificadas pela comunidade. Em cada cruz, data da morte, nome e idade dos jovens mortos pela polícia, em ações realizadas no local.
“A gente queria algo com peso, que marcasse, por isso as cruzes. A comunidade ajudou a comprar madeira, pintar, martelar, escrever, foi tudo em conjunto, com muito apoio dos familiares e da comunidade”, relembra Liz.
Na madrugada do mesmo dia, a polícia disparou rajadas de tiros em direção ao Morro do Mocotó, assustando moradores e chegando a atingir um cachorro. Vinte e dois dias depois, em 26 de maio de 2020, a PM voltou a matar.
Jonatan Cristhof do Nascimento (24) faleceu após ser baleado nas costas e não receber socorro médico – segundo a comunidade, o SAMU chegou a ir até o local, levou dois jovens que foram atingidos por estilhaços, mas não socorreu Jonatan por falta de autorização policial. Agonizante, o jovem negro chamava pela mãe, pedindo para que não o deixassem morrer.
De acordo com o laudo pericial, há indícios de movimentação da vítima após o processo hemorrágico. O documento também indica que na arma, supostamente em poder da vítima e que teria sido usada para disparar contra a polícia, não havia marcas suficientes para uma confrontação papiloscópica – ou seja, não havia digitais de Jonatan no objeto.
Quando questionada, durante o inquérito policial, sobre as gravações do suposto conflito, a polícia militar respondeu: “por ser um projeto ainda em implantação, temos encontrado alguns problemas técnicos. Algumas câmeras policiais não estão logando no sistema e, portanto, não gerando imagens, assim como algumas câmeras policiais encontram-se com problemas de bateria e encerrando as gravações após pouco tempo de utilização tornando-as inoperantes para a gravação pelo resto do turno”.
Novamente, o Ministério Público optou por arquivar o caso, alegando excludente de ilicitude. Previsto no artigo 23 do Código Penal, o excludente de ilicitude exclui a culpa em condutas ilegais praticadas em determinadas circunstâncias, definindo que “não há crime quando o agente pratica o fato: em estado de necessidade; em legítima defesa; em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”. Em resumo, se os policiais alegam legítima defesa, mesmo que não a provem, estão autorizados a matar.