Primeira vítima da polícia da história da Vila Cachoeira, Tininho foi morto por um tiro de fuzil do 21º Batalhão; adolescente teve seu resgate atrasado e apresentava marcas de agressão no rosto
Reportagem de Gabriele Oliveira e Rodrigo Barbosa
“Não vou conseguir falar contigo agora. Sujou, o Bope está aqui na Vila. Tô no pinote, tomara que eles não me achem aqui”.
A última mensagem enviada por Paulo para a namorada foi às 22h19 do dia 25 de março de 2025.
Cerca de 20 minutos depois, os moradores da Vila Cachoeira escutam rajadas de tiro – e, por fim, o corpo de Paulo caindo na água.
Policiais militares se cumprimentam e comemoram a conquista, enquanto o menino de 15 anos, baleado na cabeça, sangra no chão.
Às 23h48, Tininho, como era conhecido, é retirado do local e levado para a ambulância. A comunidade observa enquanto, dentro de um saco preto, seu corpo ainda tinha vida.
Às 01h56, Tininho chega ao Hospital – é entubado, e segue sangrando. No seu rosto, hematomas e cortes põem em cheque a legítima defesa alegada por policiais.
Em frente ao hospital, familiares partilham rezas e lágrimas. No quarto, na manhã do dia 26 março, cerca de 12 horas após o tiro, Paulo morreu.
A espera
Tininho chegou à Vila no fim da manhã daquele dia e já deveria ter voltado para casa. A presença do BOPE na comunidade em que a mãe mora, distante dali, fez com que o adolescente se atrasasse para pedir um carro de aplicativo para deixar a Vila Cachoeira – onde vive outra parte de sua família. Para um jovem preto, não há nada pior do que chegar na favela e dar de cara com a caveira.
Trocou mensagens com a namorada e, cerca de dez minutos depois, já perto das 22h, foi convencido a ir para a casa dela, em uma terceira comunidade. Comprou uma Coca-Cola para o jantar e, enfim, chamou um Uber.
A garrafa de Coca foi arremessada para o lado instantes depois de o adolescente sair do mercadinho. A polícia havia chegado também à Vila Cachoeira. Começou a correria.
“O Uber já tava chegando ali. Assim que ele saiu da venda com a Coca, esperando o Uber, a polícia veio. Aí, automaticamente, todo mundo corre. Porque eles já chegam batendo, né? Ele largou até a Coca quando ele correu“, lembra um familiar. Tininho correu para a parte de trás do mercado, por um caminho de terra, acompanhado de mais dois jovens – um se separaria dos outros logo em seguida.
Com a polícia no encalço, os dois jovens seguiram correndo por uma região de mata para além das últimas casas da comunidade. O caminho, à noite, não conta com iluminação. Conhecer o território como as palmas das mãos é uma das únicas maneiras de se deslocar por ali em alta velocidade, no escuro, em meio a pedras, mato alto e terreno íngreme.
Era o caso de Tininho. O adolescente, que frequentava o território desde a infância, foi descendo barranco abaixo e conseguiu chegar até o local que dá nome à Vila Cachoeira: uma pequena queda d’água na região de mata nos fundos da comunidade. Pensou que ali estaria seguro.
Mas existe uma outra maneira de se localizar em meio à escuridão naquele território: tecnologia. A presença de drones tem sido cada vez mais comum na Vila Cachoeira, como aconteceu durante o dia e na noite do crime. Pouco antes de chegar ao leito do riacho, Tininho foi encontrado por ao menos dois policiais. Um deles tinha o rosto coberto por uma balaclava.
A primeira rajada de tiros foi imediata e parecia não ter fim. Ninguém foi atingido, mas o pânico tomou conta. “Foi muito tiro, o meu pequeno ficou apavorado“, lembra uma mãe que levou o filho ao banheiro de casa para tentar protegê-lo.
Em algum momento dos vinte minutos finais da vida de Tininho, o jovem que o acompanhava foi capturado. Vindo de outra cidade, o jovem branco trabalha como Uber e vivia sua primeira noite no corre. Algemado, deixaria a Vila Cachoeira falando que nunca mais colocaria os pés ali. Foi solto no dia seguinte.
Tininho não teria o mesmo destino. Seguiu correndo e foi interceptado ao chegar ao leito do rio, em total escuridão. “Eles pegaram ele e perguntaram alguma coisa, ele se negou, não quis falar. Aí bateram nele, ele tá todo machucado“. Os ferimentos na boca e no olho de Tininho ilustravam a violência sofrida. Mas o golpe final ainda estava por vir.
Às 22h40, cerca de dez minutos após a rajada de fuzil, moradores ouviram um último e solitário tiro. Em seguida, um grito de dor e o barulho de um corpo caindo na água.
O desespero
Na quebrada, as notícias correm rápido. Pouco depois de uma bala de fuzil atravessar a cabeça de um adolescente negro, toda a comunidade já sabia que um “menino de camisa azul” tinha sido atingido. Não demorou para que a família soubesse que era Tininho.
Tão rápido quanto a notícia do tiro correu pelos becos, foram os novos policiais que chegaram ao local. Apenas uma viatura do Tático do 21º Batalhão da Polícia Militar de Santa Catarina (21BPM) chegou ao mercado no começo da perseguição. Porém, quando moradores e familiares se dirigiram à região dos disparos após Tininho ser atingido, o local já estava tomado por viaturas. Como de praxe, ninguém se aproximaria da cena do crime ou da vítima.
A esta altura, o adolescente ainda estava vivo e a estatística seguia de pé: desde sua fundação, há cerca de trinta anos atrás, a Vila Cachoeira nunca havia perdido uma vida para a polícia – o que não significa que seus moradores não conheciam a violência que a instituição representa.
“Espancamento, pegar guri e botar sacola na cabeça, bater com a pistola, isso aí já aconteceu muito. Já balearam também um guri dentro da casa dele, ele quase perdeu o movimento das pernas“, lembra uma moradora. Aquilo estava prestes a mudar. “Assassinar assim foi a primeira vez“.
Atingido na cabeça por um projétil de fuzil – cujo orifício de saída do corpo é grande – Tininho perdeu muito sangue. No dia seguinte, um morador colocaria fogo na cena do crime para tentar apagar o trauma. Mas a violência sofrida pelo adolescente foi tamanha que nem a água, nem o fogo, foram capazes de apagar suas marcas. Após levar o tiro, Tininho caiu entre duas pedras, de modo que as chamas do dia seguinte não consumiram por completo o material que ali estava.
Dias após o crime, uma enorme mancha roxa composta por material orgânico, com cinzas ao redor, indicava a quantidade de sangue perdida pelo jovem. Numa pedra plana mais à frente, o fogo conseguiu apagar quase todo o sangue que a pintou de vermelho dias antes, mas suas cinzas mostravam que Tininho teve seu corpo movido após o tiro.
Para que ele saísse do leito do rio, entretanto, levou tempo. O adolescente ficaria ao menos meia hora baleado na escuridão do riacho. “Não veio nem Civil, nem IML, nada! O SAMU chegou e ele tava aqui no rio ainda“, conta uma testemunha. Em contato com a reportagem do Desterro, a Polícia Militar de Santa Catarina afirmou que “no momento do fato não mediu o tempo” levado para que Tininho fosse retirado da Vila Cachoeira pela ambulância. A corporação ainda afirma que seus agentes acionaram a emergência logo após balear o adolescente – fato que é contestado pela comunidade. Segundo testemunhas, um morador da comunidade foi o primeiro a acionar o SAMU, instantes depois de ouvir o tiro que atingiu a vítima.
A ambulância ficaria estacionada no pátio do antigo Centro Comunitário da Vila Cachoeira – prédio hoje utilizado pela comunidade para abrigar pessoas em situação de rua. Tininho, ainda com vida, seria levado até ali como um cadáver: “Botaram ele dentro de um saco preto e jogaram ali na frente do Centro Comunitário”.
Quatro policiais carregavam o adolescente no saco, que estava quase todo fechado. Só era possível ver metade do rosto de Tininho. Sua cabeça balançava. Os policiais passaram pelo meio do rio e, logo depois da margem, subiram por uma escadaria de madeira. Há relatos de que, neste trajeto, o saco teria sido arrastado.
Ao chegarem ao final da escada, em terreno plano, o adolescente não seria levado até a ambulância. “Subiram com ele por aqui e jogaram ele lá nos tijolos“, conta uma moradora. A cena aumentou a revolta da comunidade.
“Pelo amor de Deus, é uma criança! Vocês mataram uma criança“!
Os tijolos em questão ficam bem em frente ao Centro Comunitário, na extremidade oposta do pátio no qual se encontrava a barreira policial que continha moradores, bem como a equipe do SAMU – que se deslocou a pé até a outra extremidade do local para prestar atendimento.
Este processo, entretanto, também foi demorado. “Muita polícia. Eles não deixavam ninguém passar. Quando alguém tentava passar, eles botavam a 12 e diziam que iam atirar. Nisso tudo, o Tininho tava num saco lá no canto. O SAMU tava lá, mas tavam só ali olhando pra ele, fazendo nada. Aí, quando foram, tens que ver a paciência da mulher do SAMU! Ela veio devagarzinho. É uma vida, mas eles não tavam nem aí”, denuncia uma testemunha.
Tininho deixaria a Vila Cachoeira na ambulância mais de uma hora após ser baleado. O SAMU saiu do local escoltado por mais de uma dezena de policiais, que afastavam moradores que perguntavam sobre a condição de saúde do jovem. Os pedidos de que um familiar da vítima – que era menor de idade – o acompanhasse durante o trajeto até o hospital foram ignorados. A família decidiu, então, acompanhar o trajeto em um carro.
O atraso
Cerca de dez quilômetros separam a Vila Cachoeira, no bairro Saco Grande, do Hospital Celso Ramos, no centro de Florianópolis. O trajeto pode ser feito em cerca de vinte minutos por um carro de passeio, pois metade do trajeto entre a Vila e o Celso Ramos é feito pela SC-401 – via expressa que permite maior mobilidade de veículos em relação a ruas convencionais da cidade. No caso de uma ambulância, que tem permissão para trafegar em velocidades acima do limite permitido em casos de emergência, espera-se que este tempo seja ainda menor.
Numa terça-feira, por volta da meia-noite, o SAMU teria caminho livre para levar Tininho ao hospital rapidamente. Não foi o que aconteceu. O veículo trafegou com a sirene desligada numa velocidade abaixo dos 70 km/h. Além disso, testemunhas afirmam que a ambulância fez duas paradas no trajeto.
A primeira delas foi em frente ao Floripa Shopping, ainda no Saco Grande. Àquela altura, havia uma viatura policial ao lado da ambulância. “Deviam estar falando para eles enrolar. Quando eles viram que a gente parou, a viatura tocou e a ambulância ficou ali parada. A mulher tava preparando uma injeção com um líquido transparente, bem de boa, bem calminha. Não tinha aquela pressa de quem tava trabalhando para salvar uma vida. O SAMU parecia mais polícia que os próprios polícia“. Segundo testemunhas, a ambulância ficou no local por pelo menos meia hora.
A segunda parada foi um pouco mais à frente, na mesma rodovia. O veículo encostou ao lado de um ponto de ônibus à frente do Cemitério da Luz, na região de divisa entre os bairros Saco Grande e João Paulo. O ponto de ônibus fica a um minuto de distância da sede do 21BPM, responsável pela operação que baleou Tininho. Foram mais de trinta minutos por ali.
O registro de uma ligação feita de um parente para outro marca o horário de chegada da ambulância ao Celso Ramos: 01h56. Cerca de duas horas após o veículo deixar a Vila, e mais de três horas após a bala de fuzil atravessar a cabeça de Tininho.
“Ele tá bem?”, perguntou um familiar.
“Bem mal”, resumiu um dos profissionais de saúde, com deboche.
Num primeiro momento, a família de Tininho acreditava que o adolescente seria levado à sala de cirurgia. Pouco depois, descobriram que o destino da vítima tinha sido, na verdade, a sala de reanimação. Segundo os médicos, sua cabeça estaria inchada demais para que um procedimento cirúrgico fosse realizado. O estado de saúde do jovem era crítico. Ele respirava por aparelhos.
Em algum momento da madrugada, um familiar foi autorizado a ver a vítima. “O médico falou que era pra eu me despedir porque a situação dele era muito grave”. Na maca do hospital, Tininho tinha um colar cervical em volta do pescoço e quase toda a cabeça coberta por curativos banhados de sangue – que também tingiu de vermelho a fralda colocada sobre o travesseiro e o lençol que cobria o adolescente.
Na área descoberta de seu rosto, eram visíveis um grande inchaço roxo no olho esquerdo e um corte vertical no lábio, também muito inchado. “A boca dele varava sangue, ele tava sofrendo muito”, lembra uma testemunha.
Como é padrão em casos onde pessoas são baleadas pela polícia e posteriormente internadas, estas são acompanhadas todo o tempo por policiais também no hospital. No caso de Tininho, dois policiais vigiavam seu quarto e outros dois ficavam numa viatura posicionada no estacionamento do Celso Ramos.
“Ontem eu tava lá falando com o Tininho pra ver se ele reanimava. O policial pegou e botou o rosto dentro de onde eu tava, deu uma risada e saiu. Riu e saiu, sabe?”
Ao longo da madrugada e manhã da quarta-feira, 26 de março, mais de uma dezena de familiares chegaram ao hospital para buscar notícias da vítima. Foram cerca de dez horas à espera de um milagre que revertesse seu quadro de saúde. Mas o milagre nunca veio. Por volta das 10h, chegou a notícia de que o tiro que atingiu a cabeça de Tininho o levou à morte cerebral.
Horas mais tarde, a polícia se manifestou. Pelo instagram do 21BPM, responsável pela morte, a corporação informou sobre a realização da operação. “Os policiais foram recebidos por disparos de arma de fogo e responderam para cessar a agressão“, diz a nota.
Em seguida, a polícia afirma que prendeu dois homens. Um deles, ferido, teria sido levado para receber atendimento médico. O “homem” ferido em questão era Tininho – um adolescente morto há pelo menos cinco horas àquela altura, fato omitido pela polícia. A omissão da morte fez com que a maior parte dos veículos da imprensa comercial da capital catarinense também não informassem sobre a morte de Tininho.
Em contato com a reportagem do Desterro, a Polícia Militar de Santa Catarina confirmou que manteve agentes no hospital acompanhando Tininho. Mesmo assim, a corporação afirmou que, no momento da publicação, teria recebido informações dos médicos de que o jovem ainda estaria vivo.
Ao menos quatro horas haviam se passado desde a morte cerebral da vítima quando a publicação foi feita. Neste período, ao menos uma dezena de parentes já haviam entrado no quarto para se despedir do jovem, ainda sob vigilância de policiais.
Questionada sobre a escolha da palavra “homem” para se referir a um menino de 15 anos, a PMSC pontuou apenas Tininho era um adolescente do sexo masculino – “ou seja um homem”.
Na foto da apreensão supostamente realizada naquela noite, constam porções de droga e uma pistola. Do lado da arma, estavam cuidadosamente dispostos 16 projéteis – um deles deflagrado. A comunidade denuncia que o material teria sido plantado durante a mais de uma hora em que somente a Polícia Militar teve acesso à cena do crime: “O guri fez 15 anos agora, nunca pegou uma arma na mão! Se ele atirasse contra a polícia, iam dar mais de dez, quinze tiros nele“.
A saudade
O sétimo dia da morte das vítimas da polícia nas periferias de Florianópolis é marcado por foguetes. Na noite de 2 de abril, o céu clareou em reverência a Tininho.
A homenagem ao adolescente aconteceu na quadra onde ele passou boa parte da infância. Por ali, nasceu para o pequeno Tininho o sonho que acompanha boa parte dos meninos de quebrada Brasil afora: seguir carreira no futebol.
Paulo se tornou Tininho por ser pequeno na infância. “Ele era muito pequenininho, sabe? Daí todo mundo chamava ele assim, de uma maneira carinhosa“, lembra um parente. Quarto mais velho de uma família de seis irmãos, foi o caçula por um bom tempo até que a quinta criança nascesse. Seu irmão mais novo nunca irá conhecê-lo: estava na barriga da mãe quando o adolescente foi morto.
Quem conviveu com Tininho o define como um menino carinhoso, em especial com as crianças. Ele também é lembrado como uma pessoa tímida. “Ele vinha na nossa casa e ficava bem quietinho atrás da porta até a gente convidar ele pra entrar. Ele era bem tranquilinho”.
No começo da adolescência, Tininho chegou a ser levado pela polícia antes da operação que o matou, por suspeita de tráfico de drogas – num episódio no qual, segundo a família, o menino também foi espancado. Mas o sonho seguia de pé.
Também ao deixar a infância, o antes baixinho garoto cresceu e direcionou o sonho de jogar bola para uma posição ingrata.
“Que que tu quer de presente, Tino“?
“Eu quero uma luva porque eu tô agarrando muito. Eu vou ser goleiro“!
Em 2 de abril, havia mais de dois times em quadra. Quase toda a comunidade compareceu para homenagear Tininho no sétimo dia de sua morte. Todos vestiam o mesmo uniforme: uma camisa branca com a foto do adolescente. Havia também quem carregasse consigo balões brancos em homenagem a ele.
O foguetório começou por volta das 20h. Foram cerca de dez minutos de clarão sob a comunidade. Mesmo do asfalto, era possível ouvir gritos de adeus. No morro, em meio à multidão, olhares de tristeza e cantos de louvor.
“Deus sabe o que faz. Se Deus escolheu ele para ser um anjo, é porque ele cumpriu o que ele tinha pra cumprir aqui na Terra, né? Sei lá… Tem que tentar pensar assim, que ele tava feliz de ver todo mundo ali homenageando ele, porque dá muita raiva, dá uma revolta…”