Um em cada dois policiais deveria usar o agora extinto equipamento; acionamento seletivo do dispositivo impediu transparência da corporação
Reportagem de Gabriele Oliveira
Com a mão trêmula, Vanusa estende o braço e mostra uma foto no seu celular. Na tela, aparece um jovem negro, sentado na escada, de olhos fechados. Não há qualquer expressão em seu rosto, e seu corpo pende para o lado esquerdo. Quando a foto foi tirada, Vanusa não sabia que seu filho estava morto.
O rapaz da foto se chama Nathanael Alves Mendes, tinha 17 anos e faleceu após ser alvejado por policiais do Batalhão de Choque da Polícia Militar, em uma operação realizada no Morro do Mocotó. Quando fala o nome de seu filho, a voz de Vanusa falha e seus olhos parecem sem vida.
Era 27 de setembro de 2021.
A polícia chegou de forma ostensiva, e rapidamente cerca de 20 policiais fecharam as três principais vias de entrada da comunidade. Naquele dia, por falha de um dos olheiros do tráfico, a PM cercou a comunidade sem que os fogos de artifício avisassem sobre a sua chegada. Se esgueirando nos becos do morro, o batalhão de Choque chegou sem dificuldades à boca de fumo que tinha como alvo.
No local, dispararam nove tiros de fuzil. Destes, quatro atingiram Nathan. O laudo pericial aponta que dois dos disparos foram realizados “de cima para baixo”, o que indica que podem ter sido feitos já com a vítima no chão, de costas. Estes dois disparos foram omitidos em entrevista dada pela PM ao Jornal do Almoço (NSCTV), no dia seguinte à Operação, na qual a corporação afirmou que o jovem teria sido atingido na lateral do peito e no braço.
A morte de Nathan é justificada pela PM como legítima defesa, contrariando o testemunho de diversos moradores do Morro do Mocotó. À época, questionada pela reportagem do Portal Cotidiano UFSC sobre mandados de prisão ativos contra o jovem, a corporação respondeu apenas que ele possuía passagens policiais por envolvimento com o tráfico.
Três anos após a morte do filho, Vanusa ainda guarda sua última foto no celular e, todos os dias, se lembra daquele momento. “Me ligaram falando que ele tinha tomado um tiro no pé. Eu cheguei correndo, e ele já estava jogado ali no chão. Eu comecei a chamar ele… ‘Nathan, acorda meu filho’. Me falaram que ele estava desmaiado, eu não tinha visto sangue.”
Vanusa achava que estava ali esperando o SAMU chegar para socorrer seu filho. Ao invés disso, viu o corpo de Nathan sendo arrastado por técnicos do IML, dentro de um saco preto, “como se fosse um cachorro morto”, como ela mesmo descreve.
Após o choque, quando tentava se aproximar do corpo, era impedida pelos policiais. Com uma arma apontada para sua cabeça e olhando para seu filho, ouvia dos agentes: “Ele é um vagabundo, bandido, tinha que morrer mesmo. Sai daí também, sua vagabunda.”
Vanusa vivencia o luto diariamente e diz só continuar viva pelo amor por seus outros dois filhos e pelos netos. Desde a morte de Nathan, nunca mais foi feliz. Foram meses sem dormir – o que, até hoje, só consegue fazer com o auxílio de medicação.
“No começo, comecei a beber, pra ver se sentia um pouco de alegria. Era pior, chorava. Nunca vou superar, acordo e durmo pensando nele. Eu ando assim perdida. Sinto falta do sorriso, do abraço dele”.
Ao falar do filho, Vanusa chega a sorrir, brincando que sente falta até de brigar com ele. O sorriso, no entanto, logo desaparece, trazendo de volta o semblante de alguém com o coração em pedaços.
“Eu me arrependo, às vezes, do tanto que eu brigava com ele, mas era pro bem dele. Ao mesmo tempo, eu penso que eu deveria ter feito mais por ele, sabe?”, diz a mãe, que se culpa por não ter sido capaz de impedir o envolvimento do filho com o tráfico.
“Tentei tirar ele várias vezes. Ele era um guri bom, só que seguiu o caminho errado. Agora que ele ia ser pai, ele estava começando a mudar, tentando ouvir tudo que eu falei ”.
Quando anda pela comunidade com a camisa que fez em homenagem ao filho, Vanusa recebe, dos vizinhos, afeto, mas, se cruza com a polícia, o tom muda para deboche. “Eles riem, falam ‘Ó, é a mãe do CPF cancelado’. Eu nem reajo, porque eu não consigo mais”.
Ao final da entrevista, ela questiona: “Será que algum dia haverá retorno sobre todas estas mortes?”.
Olhos que nada vêem
Dentre os 20 policiais que ocuparam o Mocotó durante a operação que vitimou Nathan, apenas um portava câmera em sua farda e ficou posicionado na rua Silva Jardim, no pé da comunidade, como olheiro da equipe. Longe do suposto tiroteio, nada viu, e nada filmou.
As câmeras corporais acopladas aos coletes foram introduzidas na polícia militar em 2019, ao custo de R$ 3 milhões. O estado de Santa Catarina foi pioneiro na utilização da ferramenta. Oficialmente, as 2.245 câmeras adquiridas pelo governo seriam suficientes para contemplar 50% dos policiais de cada turno operacional – assim, um em cada dois policiais deveria utilizar o equipamento.
Sua função, de acordo com a própria corporação, era aumentar a transparência e fiscalização das ações policiais e do uso da força, além de proteger os policiais de falsas acusações. Para a Polícia Militar, o uso das câmeras corporais poderiam dissuadir os policiais a fazer o uso de força desnecessária, tendo ciência de que suas ações estão sendo gravadas.
O programa das câmeras corporais da PMSC foi encerrado em 16 de setembro de 2024. A corporação alegou que os equipamentos “não alcançaram os objetivos esperados”, destacando problemas técnicos e de manutenção. De acordo com o comando da PM, seriam estudadas novas soluções tecnológicas mais adequadas à preservação da Ordem Pública. A nota da PM, porém, não menciona aquele que foi, durante os mais de cinco anos de programa, o principal problema para os moradores dos morros da cidade.
O acionamento das câmeras corporais ocorria de maneira automática quando a guarnição iniciava seu deslocamento até o local da ocorrência, recebida pelo 190, gravando, assim, toda a ação. No entanto, a maior parte dos supostos conflitos que vitimam jovens ocorrem nos chamados “patrulhamentos de rotina”, incursões feitas cotidianamente pela Polícia Militar nas comunidades, sem a existência de um chamado específico.
Sem que a ocorrência seja gerada pela Central, não havia acionamento automático das câmeras. No dia a dia da polícia, ficava a critério de cada policial ligar ou não o equipamento, no momento em que ele mesmo julgar adequado – antes, durante ou depois do conflito. Para o tenente-coronel André Rodrigo Serafin, representante do 4° batalhão da Polícia Militar de Santa Catarina, em entrevista realizada em dezembro de 2023, esse método era efetivo.
“O protocolo já foi criado dessa forma: tendo ameaça letal contra a vida do policial, ele primeiro reage e depois aciona as câmeras. Nós temos imagens de quase todos os confrontos, ainda que posteriores. Não tem nada de equívoco nisso, nada disso está fora do protocolo.”
Não por acaso, o equipamento fiscalizador se mostrava inútil quando precisa ser usado para provar que não houve abuso de poder nas alegadas ações decorrentes de legítima defesa, pois seu funcionamento estava atrelado a uma escolha de cada policial. Mesmo quando o acionamento das câmeras ocorria automaticamente, elas podiam ser desativadas, pois possuíam um botão de liga/desliga que mantinha o poder na mão do agente.
Quando utilizadas, as câmeras corporais geram imagens que só podem ser acessadas por instituições de segurança pública, como a Polícia Militar e a Polícia Civil – responsável pelos inquéritos policiais, processos que investigam a atuação dos agentes em Operações onde ocorrem confrontos.
Quando é instaurado um inquérito policial para apurar as mortes, a Polícia Civil pode solicitar as gravações das câmeras corporais como uma prova de que os policiais agiram dentro da lei. Ao fim da investigação, a Polícia Civil encaminha a sua conclusão ao Ministério Público, que analisa o caso e pode solicitar novas provas. Cabe à promotoria do MP estadual denunciar ou não os policiais, coibindo novos abusos.
Campo de guerra
Quando o Batalhão de Choque disparou aqueles nove tiros de fuzil, paralisou toda a comunidade. A poucos metros da escadaria onde Vanusa olhava para o corpo de Nathan, crianças e adolescentes, junto a seus professores, sentiam pânico – dentro de um prédio de dois andares no centro do Morro do Mocotó, funcionários atendiam ligações de dezenas de pais desesperados, ao mesmo tempo em que colocavam seus corpos sobre as crianças, como escudos.
Naquele dia, todas as atividades foram interrompidas após o som do primeiro disparo. Sem o aviso dos olheiros, a Associação de Amigos da Casa da Criança e do Adolescente do Morro do Mocotó (ACAM) só soube que a PM estava no Morro quando as balas disparadas pelos fuzis já atingiam seus alvos – além de Nathan, um homem de 27 anos também foi atingido.
Os fogos de artifício, utilizados como forma de comunicação do tráfico para avisar que a polícia chegou à comunidade, se tornaram também um aviso para os educadores da instituição, que precisam estar sempre atentos aos disparos ao seu redor.
“Se for muito próximo, a gente manda as crianças se abaixarem, todas ficam deitadas no chão. Se a gente percebe que está na proximidade, mas não tão perto, a gente segura as crianças aqui dentro”, explica Camila (nome fictício), funcionária da ACAM.
A situação fica mais complicada quando as crianças estão em atividades externas, fora do prédio principal. A estrutura da ACAM ocupa um conjunto de prédios na comunidade, o que faz com que pequenos grupos de crianças, acompanhadas sempre por um responsável, circulem pelos becos do Mocotó.
“Se as crianças estão na parte externa – por exemplo, lá embaixo, no campinho, – algum funcionário vai ao encontro do educador, e aí a gente sobe em grupos, conversando, segurando as crianças pela mão. Se são grupos dos pequenos, têm crianças que choram com medo, não querem subir. A gente se divide e vem caminhando em dois, três educadores, até o refeitório.”
Porém, naquele dia, o fim dos disparos não significou o fim da violência. Três funcionários da Delegacia de Homicídios da Capital (DH), vinculada à Polícia Civil, invadiram o prédio da instituição sem nenhum tipo de mandado judicial ou autorização de funcionários da ACAM.
Segundo testemunhas, o motivo da invasão foi um vídeo, gravado por uma funcionária da instituição, que registrava a tentativa de negociação dos líderes da comunidade com a polícia, que impedia Vanusa de chegar até seu filho. Os agentes da DH obrigaram a funcionária, sob ameaça de prisão, a apagar a filmagem.
“A mãe do Nathan não podia ir até onde estava o corpo do filho, né? Ela chorava muito, e isso mexeu muito com todos. Marcou todo mundo que estava naquele momento, ter visto o desespero de uma mãe sabendo que o corpo do filho está no chão, e não poder ir até ele. A gente tentou filmar pra poder compartilhar, pra poder tá mostrando principalmente a ação do Padre Vilson naquele momento. Muito mais do que a ação deles, a deles a gente já tá acostumado”, relembra uma funcionária.
Questionada, a Polícia Civil nega a invasão. “A Delegacia de Homicídios esteve no local após o confronto para investigar o que aconteceu e fazer diligências. Mas não entraram na instituição e nem apagaram imagens”, afirma Ênio de Oliveira Mattos, delegado titular da Delegacia de Homicídios da Capital.
O episódio de pânico, infelizmente, não é exceção. Apesar de uniformizados e portando crachás de identificação, diversos funcionários relatam serem desrespeitados por policiais, que são agressivos durante as abordagens, chegando até a prenderem alguns deles dentro do prédio. Com medo, muitos educadores acabam interrompendo seu trabalho na instituição.
“Por ser um território que oferece esses desconfortos, a gente tem dificuldade de manter a equipe aqui. Muitas pessoas saem adoecidas, com crises de ansiedade. Pela questão da polícia, de tiroteio, da dificuldade mesmo de lidar com o dia a dia das crianças”, relata a funcionária.
Tratar das consequências da violência policial acaba se tornando, também, uma função da organização, que busca auxiliar os alunos por meio de rodas de conversa e acolhimento, contando com uma equipe interdisciplinar formada por psicólogos, assistentes sociais e pedagogos.
O trabalho terapêutico promovido pela instituição muitas vezes se expande para a família, igualmente inserida em um contexto que põe em xeque direitos básicos, como o de ir e vir.
“Eu tenho relato de mães cujo filho, ao ser abordado de forma violenta e apanhar da polícia, passa a não ter mais nem coragem de levar o lixo na rua, porque tem medo que a polícia chegue e aborde ele novamente. Eu tenho relato de criança de seis anos abordada quando está retornando pro colégio, e os policiais pedirem pra olhar a mochila”, pontua Camila.
Camila compreende tanto as causas estruturais que levam diversos menores ao tráfico, como a função que a polícia militar precisa cumprir na sociedade. Mas basta observar os olhos nervosos da funcionária para perceber a dimensão do seu temor diante daqueles que deveriam proteger a comunidade. “A forma de atuação deles é violenta e eles teimam que não. Eu tenho medo”.