Estado de luto: jovem negro espancado durante as chuvas no Morro do Horácio é assassinado pela PM uma semana depois

Lolinha foi executado com oito tiros, dentro de sua própria casa, na presença de sua família

Reportagem de Rodrigo Barbosa e Gabriele Oliveira

Andar pelas ruas do Maciço do Morro da Cruz é conhecer uma outra Florianópolis. Uma Floripa de becos, vielas, pessoas negras e pobres – em boa parte, migrantes de outros estados e países. Muitas vezes atraídos pela oferta de empregos nos ramos de construção civil e comércio, é nas quebradas de Floripa que esta população encontra moradia e acolhimento. 

Nos becos do Horácio, por exemplo, a camisa do Bahia Esporte Clube é tão comum quanto a do Avaí ou a do Flamengo – demarcando a construção coletiva de um território negro e plural que constrasta com outras regiões da cidade. 

Foi por esse intercâmbio entre Bahia e Florianópolis que a família Santos chegou à Ilha da Magia, nove anos atrás, em 8 de fevereiro de 2016. Naturais de Teofilândia, pequena cidade baiana a 200 km de Salvador, os Santos se instalaram, como muitos de seus conterrâneos, no Morro do Horácio.

Vivendo de aluguel por quase uma década, a família havia recentemente conquistado a casa própria. Coube ao filho do meio, José Romualdo, o Lolinha, levantar a casinha de madeira que tirou os Santos do aluguel. Aquele local tinha tudo para marcar uma nova – e positiva – fase para a família. Pouco tempo depois, se tornaria o leito de morte de quem o construiu.

Oito tiros ao acordar

Eram cinco e meia da manhã quando os cachorros da vizinhança começaram a latir. Parte dos moradores ainda dormia, mas houve quem ouvisse passos logo depois. Além daqueles que acordam antes do Sol por conta do trabalho, muitos moradores da região do Campinho não dormiram direito a semana inteira. 

No dia 17 de janeiro, três jovens foram espancados pela Polícia Militar dentro de uma das casas de madeira da vizinhança: a residência da família Santos. Policiais do 4BPM foram ao local alegando estarem realizando uma abordagem de rotina. Naquele momento, moradores consertavam telhados danificados por uma tempestade no dia anterior. Os agentes levaram Lolinha e dois amigos para dentro de sua casa e passaram cerca de duas horas torturando os jovens: socos, chutes, pauladas e ameaças de morte. Ao menos uma dezena de crianças também foram agredidas por spray de pimenta. 

Na manhã do dia 24, uma semana mais tarde, era para a mesma casa de madeira que os passos seguiam, enquanto Lolinha e família dormiam. A polícia estava de volta.

Neste dia, não haveria arrombamento. O desaparecimento de uma das chaves da casa durante a sessão de espancamento do dia 17 já havia chamado a atenção da família. A porta de madeira rangeu. “Tem alguém aqui dentro de casa”. Não houve tempo para muita coisa. Os policiais avançaram pela sala e foram diretamente ao cômodo que fica de frente para a porta de entrada. Era o quarto de José Romualdo, jovem negro de 20 anos de idade.

Lolinha, como José era conhecido, chegou a acordar com o barulho. Assustado, levantou-se pelos pés da cama, mas não teve tempo para mais nada, além de ver a porta de seu quarto sendo aberta em direção à sala. Ali mesmo, no pequeno espaço entre seu guarda-roupa e sua cama, foi alvejado. 

Morte imediata no cômodo da direita, dor imediata no da esquerda. Não foi necessário que ninguém desse a notícia à família. A morte de José chegou com a potência do barulho de oito disparos de pistola, a uma fina tábua de madeira de distância. 

A cena do crime não deixa dúvidas: apenas a polícia atirou. Os móveis e paredes com marcas de disparos ficam todos atrás de onde estava Lolinha, de modo que nem a própria PM alega que a vítima atirou contra o 4º Batalhão. 

Entre cumprimentos entre os policiais na cena do crime, intimidações e empurrões a moradores, a casa foi rapidamente isolada. Testemunhas ainda relatam que policiais presentes no local culpabilizaram a própria comunidade pela morte de Lolinha, devido a denúncias realizadas em reportagens e redes sociais referentes às agressões contra jovens do Horácio na semana anterior. Para o Estado de Santa Catarina, a denúncia de uma violência é justificativa para mais violência. 

Um enorme rastro vermelho no chão indicava que o corpo de Lolinha foi arrastado após a sua execução, do quarto para a sala. De acordo com testemunhas, era na sala que o corpo da vítima estava quando a Polícia Civil chegou no local. 

A Civil, aliás, já se encontrava no Morro do Horácio desde antes da execução. Enquanto Lolinha era morto, policiais da Delegacia de Combate às Drogas da Polícia Civil (DECOD) cumpriam mandados de busca em outros locais da comunidade. Pouco minutos depois da morte, a Delegacia de Homicídios chegou ao local. Segundo relatos, esta chegada também se deu através de violência contra a vizinhança: “O Delegado veio pra cima de mim. Só não me bateu porque minha amiga entrou na frente”.

Moradores do Horácio contestam o processo de perícia conduzido a partir deste momento. No local do crime, após a questionável perícia realizada, testemunhas encontraram munições de pistola 9mm disparadas pela guarnição. “Os tiros ultrapassaram guarda-roupa e parede. É uma cena de crime. Não teve uma perícia que analisou o local realmente. Cadê a prova que tinha essa arma? Cadê os tiros?”, denuncia um morador. O intervalo entre o momento definido pela polícia como sendo o da morte de Lolinha (06h05) e o momento em que seu corpo entrou no rabecão é de pouco mais de uma hora. 

Pesadelo

Para a polícia, as alegações da comunidade não passam de um grande pesadelo coletivo. Segundo eles, Lolinha não estaria dormindo, mas acordado e em via pública, quando a PM chegou ao Horácio. Os veículos da imprensa comercial da região metropolitana informaram, ainda no dia da morte, a existência de uma perseguição envolvendo a vítima. 

A afirmação dos jornais tem como base a dinâmica apresentada pelas Polícias Militar e Civil, responsáveis pela condução de uma operação conjunta no Horácio na manhã de 24 de janeiro. A mesma dinâmica também consta no Boletim de Ocorrência do caso. Lolinha estaria acompanhado de um segundo homem, em via pública, quando as guarnições chegaram ao Horácio pela manhã. Correu e foi perseguido.

Espancado em 17 de janeiro, Lolinha teria escolhido a cena do crime, visitada por aqueles mesmos policiais uma semana antes, e onde a família dormia naquele momento, como esconderijo ideal. Mais especificamente, segundo os policiais, teria entrado em seu quarto e voluntariamente se posicionado entre a cama e o guarda-roupa. Um beco sem saída onde ele próprio só cabia por ser um jovem magro. 

De acordo com a PM, os policiais entraram no cômodo e Lolinha teria sacado uma arma, sendo alvejado antes que pudesse disparar. 

O pior de tudo é que os jornais daqui só postam a versão da polícia. Não vão procurar a comunidade para saber o que acontece, eles não fazem isso”, contesta uma moradora.

Nenhum documento oficial ou veículo de imprensa informa em que ponto da comunidade a suposta perseguição teria começado, ou que fim levou a pessoa que supostamente estava na companhia de Lolinha no começo desta perseguição. Há poucos detalhes sobre a dinâmica do caso na imprensa, e os documentos relativos ao homicídio apresentam inconsistências. 

Na declaração de óbito, o local da morte é definido como “via pública” e não “domicílio”. No Boletim de Ocorrência, este erro é corrigido e o local consta como “residência”. Mas os endereços que constam em ambos documentos estão incorretos. 

A Rua Antônio Carlos Ferreira é apontada pelo Estado como o local da morte de Lolinha. Esta rua fica a pelo menos 250 metros densamente povoados de distância da casa da vítima. No Boletim de Ocorrência, aliás, as coordenadas geográficas e o número da rua indicados são referentes a uma igreja. Lolinha não teria, segundo este documento, morrido no cômodo ao lado da mãe, mas dentro da casa do Pai.

A Servidão Assis Antunes de Matos, via asfaltada e transitável por veículo, dá acesso ao caminho de terra que leva às casinhas de madeira da região do Campinho e não é citada em momento algum. O único outro endereço que aparece nos registros do Estado é o antigo endereço da vítima – que fica numa terceira via do Horácio, localizada entre o local indicado como o local sendo o da morte e onde ela realmente aconteceu.

A maioria das imagens repassadas pelas corporações à imprensa foram captadas na rua da já citada igreja – não há, entretanto, qualquer indício de perseguição nas imagens divulgadas. 

Também nestas imagens, é possível ver a Polícia Civil cumprindo mandados na comunidade. O antigo imóvel da família Santos, onde ainda viviam de aluguel, foi uma das casas que teve a porta jogada abaixo. Quando a Civil entrou no local, a PM já havia matado Lolinha em outro imóvel. O mandado em questão, entretanto, sequer é utilizado pela polícia como motivo para terem entrado na residência do Campinho – a suposta perseguição é dada como justificativa.

Há outro ponto amplamente divulgado pela mídia que é contestado pela comunidade: as apreensões. “Operação policial apreende R$50 mil em drogas e dinheiro no Morro do Horácio”, apontavam as manchetes no começo da tarde do dia 24. 

O saldo de apreensões da megaoperação mostrava uma pistola Taurus 380 sem cápsulas deflagradas, uma quantidade não especificada de dinheiro em espécie, cerca de meio quilo de entorpecentes e duas camisetas da Polícia Civil. 

Apesar dos onze mandados cumpridos naquela manhã, ninguém foi preso. Segundo PMSC e PCSC, todas as apreensões daquele dia teriam sido feitas dentro do armário baleado de Lolinha – com exceção da arma que, de acordo com a versão oficial, estaria na mão da vítima. Nessa lógica, Lolinha teria mantido drogas e armas na mesma residência em que policiais invadiram e o espancaram, uma semana antes. 

Eles subiram com uma mochila preta grande, pegaram dentro do carro e subiram com ela aqui”, denuncia um vizinho, que completa: “R$50mil onde? Um menino que vivia pedindo dois reais pra comprar um Gudang”. No dia 17, quando a PM esteve no interior do local por cerca de duas horas, não foram realizadas apreensões. 

As imagens divulgadas na imprensa mostram a apreensão do dia 24 já na Delegacia. Quando testemunhas que estavam ao redor da cena do crime pediam informações aos policiais, as fotografias apresentadas mostravam o material supostamente encontrado no armário de Lolinha organizado na cama da vítima. 

A Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina (SSP/SC) não respondeu os questionamentos encaminhados pela reportagem do Desterro.

Destino traçado

Lolinha era uma criança de 11 anos quando chegou a Florianópolis e vivia uma vida tranquila até a transição para a adolescência. Foi quando começou a faltar às aulas. “Começou amizade na escola, começou a fugir da escola…”. Ainda jovem, se envolveu com o tráfico de drogas. 

Ele foi preso de menor, ele teve muita passagem. Porque ele sempre tava na rua com alguém, os de maior corriam e ele assumia o B.O. porque era de menor”, lembra uma pessoa que conviveu com ele. A reclusão mais longa de Lolinha durou 7 meses, quando ainda era menor de idade. Nessa mesma época, então adoecido, Lolinha teria sido influenciado por um amigo a realizar um roubo. Saiu dali baleado no joelho. “Depois disso, a polícia pregou o olho nele”.

Aos 18 anos, José Romualdo começou a compreender sua espiritualidade. Nos últimos dois anos de vida, via de regra andava com uma guia preta e vermelha em volta do pescoço. Umbandista, era protegido por Maria Mulambo. Na casa que construiu para a mãe, escreveu a palavra “Fé” em letras garrafais na parede de entrada.

Desde a maioridade, foi levado à prisão uma única vez, acusado de tráfico de drogas em agosto de 2022. Réu primário e desarmado, foi solto na audiência de custódia. No processo relativo a esta detenção, o caso do roubo de anos antes é relembrado por PMs. No documento, agentes ainda afirmam, em mais de uma ocasião, que Lolinha era conhecido pelas guarnições que atuam no Horácio.

Segundo relatos da comunidade, Lolinha não estava mais envolvido com o tráfico há pelo menos oito meses. Embora oficialmente desempregado no momento de sua morte, fazia bicos na construção civil. A ocupação “servente” consta em sua declaração de óbito. No processo relativo a sua acusação de 2022, PMs relatam que Lolinha trabalhava formalmente pelo período da manhã. A juíza do caso não encontrou elementos que indicassem que ele integrasse uma organização criminosa.

Mesmo assim, as ameaças nunca pararam. Assim que entregou a nova casa à família, Lolinha informou aos parentes que não viveria ali. “Ele tinha medo da polícia, tinha medo de morrer. Ele ouvia falar alguma coisa e já ficava assustado”. 

Seus dias estavam contados, ele dizia. A falta de dinheiro fez com que o plano de se mudar para proteger a família nunca acontecesse, e a promessa de morte se cumprisse no cômodo ao lado de onde dormia a sua mãe. 

Mas, se a morte costuma marcar o fim, no caso da relação de José Romualdo Santos de Jesus com o Estado, não foi bem assim. Também no dia 24 de janeiro de 2025, o Ministério Público de Santa Catarina emitiu uma intimação em nome de Lolinha. Um oficial de justiça iria avisá-lo sobre as novidades de seu processo de 2022, que ainda corria. 

Era tarde demais. A assinatura que consta no documento foi emitida às 18h04, quando a vítima já estava morta há doze horas. 

Certifico que, em cumprimento ao mandado extraído dos autos mencionados, deixei de proceder a intimação de JOSÉ ROMUALDO SANTOS DE JESUS, pois constatei no SISP que o destinatário faleceu em confronto com a polícia em 24 de janeiro deste ano. Dou fé“. 

Coube ao Estado, avisar ao Estado, que o documento em questão intimava um cadáver – produzido pelo próprio Estado.

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