Pela Costeira, passava um trem. Que, por ali, era conhecido como Dutrem. Descia o morro embalado, sem ligar muito para escadarias, ladeiras estreitas ou caminhos de terra. Som no talo, velocidade máxima. No meio da favela, aquele trem fazia até manobra.
A história de Vitor Hugo Ambrósio, morto pela PM aos 17 anos na Costeira do Pirajubaé
Reportagem e fotografias por Rodrigo Barbosa, em parceria com o Cotidiano UFSC
Pela Costeira, passava um trem. Que, por ali, era conhecido como Dutrem. Descia o morro embalado, sem ligar muito para escadarias, ladeiras estreitas ou caminhos de terra. Som no talo, velocidade máxima. No meio da favela, aquele trem fazia até manobra.
“Não é à toa, Dutrem já diz tudo: ele levava qualquer um! Pela conversa e simpatia que ele tinha“, conta um amigo de Vitor Hugo Ambrósio, 17 anos. O Vitinho. Vulgo Dutrem.
Sempre na atividade. Com a família, no skate, no rap e no corre. Viajava a todo vapor pelas ladeiras do Morro da Costeira, desde 2004. Criou seus próprios trilhos e viveu intensamente. Sua última viagem foi no dia 22 de outubro de 2021. Por volta do meio-dia, o trem que passava pela Costeira descarrilhou. Vitinho morreu baleado em uma operação da Polícia Militar de Santa Catarina.
Esta reportagem é uma viagem pelos trilhos sinuosos percorridos pelo trem da Costeira. Estação por estação, até a última viagem.
Estação Base
Fica bem no topo do morro. Mais especificamente, no alto de uma escadaria que, vista de baixo para cima, parece te levar até o céu. Por ali, todo mundo tem bicho. Gato, galinha, ganso ou cachorro. Reza a lenda que se chega de carro até lá, por um caminho de terra. Acima da estação, tudo verde. A Mata Atlântica completa o ar rural da paisagem de onde todo dia partia o trem da Costeira.
Aqui, Dutrem era apenas Vitinho. A estação é a residência de sua mãe, Sônia. Uma casa de alvenaria em constante construção, onde Vitor nasceu e viveu boa parte dos 17 anos, na companhia da mãe e de dois irmãos mais novos. Boa parte porque, mais recentemente, Dutrem passava as noites em um pequeno cômodo de madeira construído a não mais que três metros de distância da janela da mãe.
O pai tomou rumo próprio anos atrás. Seguiu pelas redondezas dos trilhos, no Morro da Costeira, mas trocou seu posto: de condutor, passou a ser passageiro esporádico. Ainda criança, sobraria para Vitinho parte da responsa de cuidar dos irmãos mais novos. Seus dois irmãos mais velhos, filhos de outro pai, vivem no interior do Paraná.
“Nem tenho muito o que dizer do meu irmão porque bah…ele era foda demais. Ele era a pessoa que eu mais confiava, sabe? Eu me sentia bem perto dele“, lembra Duda (13), filha-irmã de Vitinho. Quando Sônia saía para trabalhar, Vitor Hugo assumia a casa. Era assim há quase dez anos.
Ele estendia a mão para além dos passageiros da estação do topo do morro. Acostumado com os trilhos íngremes e sinuosos de seu trajeto pela Costeira, Dutrem carregava compras de supermercado da comunidade morro acima e levava cestas básicas às famílias mais empobrecidas da Cidade Alta, comunidade vizinha. Segundo a mãe, nunca para a própria casa: “Tem gente precisando mais, coroa. Nós não passamos fome“. Mas a responsa cobra seu preço. Nas palavras de um amigo, “Dutrem era um homem! Um homem de 17 anos, que aos 13 já levava a irmã para a escola, que fazia comida pro irmão mais novo. O Dutrem era uma criança grande. Ele só queria umas batata frita, rapaziada“. Uma criança grande. Um trem sobrecarregado, procurando rota de escape.
Estação Refúgio
De uma estação com pinta de zona rural para uma essencialmente urbana. O cinza do concreto se mistura com o colorido dos grafites em padrões irregulares. É a estação mais baixa, aos pés do morro. O Skate Park da Costeira.
Ali, anos atrás, um garoto de onze ou doze anos tentava chamar a atenção do irmão mais velho.
“Olha a manobra que eu aprendi!“
“Para, cara, cê nem sabe andar de skate“
“Sei sim!“
E o garoto fez a manobra, como lembra Alexsandro. É a maior lembrança que ele tem do irmão mais novo, a pessoa que mais o incentivava a seguir em frente com a carreira de jogador de futebol no interior do Paraná. “Pra mim, o Vitinho só não é Deus porque Deus é o maior. Mas, depois de Deus, é ele”.
Em cima do skate, Dutrem viveu o mais próximo possível do que se pode considerar uma infância. Fez parte da primeira geração da escolinha da ASCOP (Associação de Skate da Costeira do Pirajubaé), quando a cena do skate da Costeira desceu da mini rampa de madeira no quintal de um morador chamado Jamaica para a maior pista pública de skate do Sul do Brasil.
“Eu dava a mão para todas as crianças para ensinar a dropar e, na vez dele, ele falou assim: ‘Não, eu vou sozinho’. E realmente ele foi. Ele era determinado, corajoso e único. Por que único? Porque o estilo dele era diferenciado. Skate é para muitos, mas estilo é para poucos“, lembra Gu, criador da ASCOP. O primeiro professor daquele guri cheio de estilo, que iria se tornar um dos skatistas mais talentosos do bairro.
Para além do skate, o professor define o pupilo como um moleque “brabão”, mas cheio de amor. Parte dessa “brabeza”, ele acha, vem do fato de que Vitinho não podia estar sempre ali, como os colegas da ASCOP. Foram várias as vezes em que recusou o convite do mestre para dropar na pista porque as tarefas de casa ainda não tinham terminado. A estação favorita de Dutrem era apenas um refúgio.
Estação Futuro
O grave das caixas de som ofuscam todo e qualquer outro barulho ao redor. É uma estação móvel: ora no asfalto, ora no morro. Ali, ninguém fica parado. Com uma batida pesada de trap, se ouve:
Morreu meu manin no bairro
Todo mundo era de boa
Quando conheceu o tráfico
Agora, uns correndo de polícia
E outros no caixão
Amém
No começo, Dutrem não botava muita fé em seguir carreira na música, como lembra seu amigo de infância, Benjamin. Pensava não ter o flow para virar um trapstar. Aquilo ali talvez não fosse para ele.
Mas uma locomotiva em alta velocidade não para de uma hora para a outra.
“Ele falava ‘tu é melhor que eu’. Hoje ele tem música e eu tô aqui ainda, o que mostra que o flow sempre foi dele“, contou Benjamin. Dutrem cantou uma música inteira pela primeira vez para a irmã mais nova há cerca de dois anos. Dali em diante, fez pelo menos outras vinte.
Foi quando Chapa embarcou no trem: “Ele me apresentou uma música e eu vi muito talento, muita sagacidade daquele menor. Vi que qualquer coisa que ele fizesse, ele ia fazer bem pra caralho“. Chapa era amigo de Dutrem e produtor da Movido A Lenha (MAL) Corp, produtora musical do Morro da Costeira. Acompanhou e incentivou os primeiros passos do “menor” na cena do trap.
As rimas afiadas de Dutrem são um duro retrato da realidade da Costeira e fizeram sucesso na comunidade. No estúdio da MAL Corp, seriam gravadas em meados de 2021.
Mas, para um jovem artista independente da periferia, é difícil emplacar para além das estações da própria quebrada. A grana e o sucesso demoram para chegar. Muitas vezes, nem chegam. E é aí que entra tráfico.
Falem bem
Ou falem mal
Mas falem de mim
Eu tô na boca
Vendendo droga
Pro teu pai, sim
Lá vem curva, e o trem tá embalado.
Estação Problema
É para onde vai o condutor de um veículo que viaja rápido demais. Fora das regras. Dutrem foi parar ali algumas vezes. Na viagem de volta para casa, nunca estava sozinho.
“Enquanto eles estão me chamando pra tirar ele lá da Delegacia, eu vou com o maior prazer. Porque eu sei que ele tá ali e ele vai vir pra casa. Eu tinha vergonha de ir ali, mas eu ia“, relembra Sônia, que voltava aplicando o sermão. Ela o preferia preso do que morto. A primeira visita de Dutrem àquela estação foi em 2019, aos 15 anos. Voltaria ali outras duas vezes, suspeito de tráfico de drogas e porte ilegal de armas.
Houve ainda mais uma passagem por roubo, mas desta vez foi o pai, o passageiro esporádico, quem o conduziu no caminho de volta. Com dor no coração, Sônia se recusou: “Vai roubar pra quê, se ele via que tudo o que eu construo é fruto do meu suor“? Deste último delito, o próprio filho teria se arrependido. Nunca deveria ter ido àquele posto de gasolina. Mas, entre o posto e a Delegacia, Dutrem passaria antes por um beco.
“Tem alguém que vai sentir a falta de vocês?“, perguntou um policial.
“A minha mãe“, respondeu Vitinho, de joelhos.
Logo depois, ele seria agredido. Não foi a primeira vez. Sônia se lembra de pelo menos outras duas ocasiões em que o adolescente foi punido para além do que consta na lei. Puro suco de Estado brasileiro.
Em uma delas, Vitinho foi acordado quando dormia na casa da mãe. Apesar de não haver mandado, policiais estavam lá dentro. Foi amarrado e espancado, na presença do pai. Em outra ocasião, teve a perna quebrada após tentar fugir de uma equipe da polícia.
Mas nada disso podia ser comparado ao que ainda estava por vir.
Estação Final
Uma estação praticamente sem cor, assim como as fotografias que a ilustram no inquérito policial. Além do preto e do branco, só se vê o vermelho, que nem mesmo a falta de cor dos registros consegue esconder. Está ali, em forma de pegadas e nas poças de sangue. Estação final: boca de fumo da Cidade Alta.
Há uma semana, esta parada estava fora do trajeto de Dutrem. Não era a primeira vez que o adolescente tentava deixar o corre: “Fazia sete dias que ele não trabalhava na biqueira. Eu saí tranquilaça, eu saí tranquilaça“, recorda Sônia que, como de costume, foi trabalhar logo cedo naquela manhã de sexta ensolarada.
Mas, como nas tentativas anteriores, não seria aquela a saída definitiva de Vitinho do tráfico. Seguiu seu rumo pouco depois da mãe, carregando um pote de Whey Protein. Pelo menos, era o que estava escrito na embalagem. “Aí eu recebo no telefone que o Vitor tinha sido baleado. Cara, aquilo me acabou, me destruiu“.
O dia era 22 de outubro de 2021. O horário, pouco antes do meio-dia. A guarnição número 0567 de Patrulhamento Tático do 4º Batalhão da Polícia Militar (4BPM) entrou na comunidade a pé.
No coração da Cidade Alta, não se chega de carro. Um atrás do outro, cada policial carregava consigo um fuzil.
A paisagem da Travessa João Bento Tomás é definida no jargão policial como “funil da morte”: para baixo, um barranco íngreme; para cima, mata fechada. No final da travessa, fica a boca de fumo. Ali, estava Dutrem, acompanhado de outros três passageiros.
Fogo. Treze disparos. Todos em direção à estação, que estava a 15 metros de distância.
Ninguém nega que só os fuzis da PM dispararam naquela manhã. Nem a própria polícia.
Teriam visto dois dos passageiros “fazendo menção de atentar” contra eles. Estava dada a justificativa para que “reagissem à injusta agressão” – a presença desta expressão em inquéritos policiais na periferia é quase tão certa como a morte, que também deu as caras naquele dia.
Luiz tinha 22 anos e foi atingido na testa. Tinha sua própria base, seus problemas e seus refúgios. Seu futuro. Estava ao lado de Vitinho e tombou na hora. Dois outros passageiros saíram correndo, ninguém sabe direito para onde. Sobrou Vitor Hugo.
Os últimos 200 metros da viagem de Dutrem foram confusos. Velozes. Sem rumo. Esquerda, direita, esquerda, direita. Foi descendo embalado e chegou ao Bar do Lúcio. Tentou entrar na casa que fica acima do bar e não conseguiu. Com a ajuda de um morador, atravessou a rua e desceu uma escada. Se encontrou com Fran, amiga de sua mãe, que chegou a tirar a camisa de Vitinho para tentar estancar o sangramento e levá-lo o quanto antes ao hospital.
Não deu tempo. Os trilhos percorridos por Dutrem eram sangue puro. Encontrar o seu rastro foi um trabalho fácil.
Quando a polícia alcança um baleado, ninguém mais chega perto.
O reboque demorou ao menos uma hora. Dentro da ambulância com destino ao Hospital Celso Ramos, o estado de saúde de Vitor Hugo já era crítico. Baleado no pulmão, perdeu muito sangue. Chegou a conversar com a médica que o atendeu. Perguntou sobre a mãe, que àquela altura desmaiava na moto do namorado a caminho do Celso Ramos.
Não se despediu do filho em vida.
Vitor,
Hoje é só saudades…
A dor da perda é muito ruim, cadê que recebo uma mensagem sua, uma ligação? Faz dias e dias sem, e o que mais me dói é nunca mais ouvir sua voz dizendo ‘coroa, te amo’.
Sabe, a dor até ameniza quando eu estou fora trabalhando, ocupando a mente. Mas aí, quando retorno para casa, a saudade toma conta. A sua falta é enorme, não tá sendo nada fácil a minha vida sem você, que era meu amigo, meu companheiro do dia-a-dia, meu filho que eu protegia demais. É que éramos unidos por um amor sem limites, verdadeiro.
Hoje olho para sua casinha e não te vejo. Bate o desespero porque sei que você não vem mais tomar um café e fumar um gudanzinho com a sua coroa.
Meu filho, onde quer que você esteja, olhe por mim e me faça forte para superar a dor da sua partida. Quanto mais o tempo passa, ela só aumenta.
Te amo muito, meu filho.
Sônia, 09 de dezembro de 2021